Ciro defende revogação da Lei Antidrogas,“equívoco grosseiro” que produz exército de jovens para facções do crime

Os políticos estão dominados pelo deixa para lá, vamos fazer o que é possível, sem inovação, só com repetição.
Ciro Gomes disse que as cidades do Brasil estão tomadas por facções criminosas. Foto: Divulgação/OAB-CE.

Em palestra feita na sede da OAB do Ceará, o ex-ministro Ciro Gomes (PDT), advogado e candidato à presidência da República em 2022, disse que a população prisional brasileira evoluiu de forma “violenta e aceleradamente pelo grosseiro equívoco” da implementação da lei antidrogas (nº 11.343), importada da realidade norte-americana pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva em 2006.

Na época, segundo o palestrante, a população carcerária era inferior a 300 mil pessoas, e após a adoção da lei passa de 1 milhão de pessoas. “Se considerarmos os mandados de prisão em aberto podemos falar em 1 milhão e 200 mil,” disse Ciro Gomes.  A evolução da demografia da população no Brasil não alcançou expressão semelhante, observou.

Sua exposição, “Os Desafios da Gestão Governamental na Segurança Pública,” no dia 21, mostrou que a população carcerária jovem, negra, cabocla e pobre (70%) da periferia de todo o Brasil é o perfil de quem “foi aprisionado pela lógica” dessa lei.

E não seria mera coincidência, segundo Ciro Gomes, que nos 17 anos de vigência da lei “as facções criminosas tenham tomado sede de forma orgânica e praticamente de forma institucional o país, porque o exército de reserva e em seguida o exército operacional dessas facções é essa população.”

Ciro Gomes lembra que o primeiro crime desses jovens “sem nenhuma característica de violência, é o transporte de pequenas quantidades de drogas, não sejamos ingênuos, não é o usuário, daquilo que se convencionou chamar no jargão da periferia de avião.”

Ele pareceu lamentar que a política prisional tenha se trasvestido num equívoco implantado “entre nós por forças de quem não se suspeitava que viesse tal iniciativa, as forças progressistas que na redemocratização acabaram dando as cartas.”

Ciro Gomes disse que por falta de projeto a “nação brasileira parece estar desorientada, e a República está sofrendo uma agonia absolutamente ameaçadora do futuro da nossa nação,” sem inovar nas solução de problemas como os da segurança pública.

A violência crescente e a expansão das facções criminosas são uma realidade que segundo Ciro Gomes está “tomando um nível de maturidade absolutamente ameaçador, não pense que há qualquer exagero no meu argumento, com o domínio territorial das facções criminosas e do crime organizado sobre as estruturas das cidades. “

“Não são mais as grandes cidades, todas as estruturas de médio porte do interior do Brasil e as capitais estão dominadas por facções criminosas, e em alguns lugares se faz de tal modo hegemônico, pela exacerbação da violência e do terror,” disse, realçando que em lugares como São Paulo e Rio de Janeiro conseguiram pacificar o domínio, até com participação de autoridades, mas em cidades como Fortaleza existe o “concurso de três facções e há uma quarta emergindo.”

O componente psicossocial que envolve a segurança pública é negligenciado, privilegiando-se o nacional-consumismo, “pelo fim da virtude do debate republicano, da disputa pela igualdade de oportunidades, da superação da miséria, da pobreza e das suas sequelas, entre elas a violência, a doença, a deseducação, a sofisticação tecnológica.”

Ciro Gomes diz que tudo isso se perdeu, para que haja um massivo e permanente bombardeamento sistemático na cabeça dos jovens “que desejam ter um Iphone, um tablete, um videogame, um tênis, camiseta de marca, elementos simbólicos do nacional-consumismo, sem que tenha renda para si e sua família.” “É toda uma geração de frustrados, e só tem um setor que está oferecendo para ontem, aqui e agora, objetivamente uma renda ilusória, mas é assim que parece ser, a renda da distribuição da droga. “

Ou é afiliado ou seviciado

Instalado há 25 anos, segundo Ciro Gomes, o fenômeno das facções criminosas é um terror do domínio territorial para o povo, enquanto para a burguesia a percepção da segurança é a ameaça a seu patrimônio.

“Nesse tempo, nenhuma instituição nova se criou para fazer face a essa inovação do fato social e político, nenhuma inovação, a não ser a impertinência a qual atribuo, ainda que involuntariamente, a produção do exército de reserva das facções que é a repressão do jovem negro pobre, por crimes não violentos no primeiro momento, mas na hora em que é apenado porque transportava meio quilo, 300 gramas de droga, 200 gramas, vai para a universidade do crime. E na primeira noite no presídio ou se afilia na facção ou vai ser seviciado,” disse.

Clientelismo

Um ingrediente grave é que o terror faz clientelismo. A facção criminosa é coadjuvante no esforço de ter uma “seguridade social”. “Não sei se todos sabem, mas há uma espécie de seguro prisão para os faccionados, e para aqueles que não são afiliados e vai ter de se afiliar irá garantir a cobertura de uma espécie de previdência social que está se organizando.”

Debaixo do nariz

A lavagem de dinheiro, a legitimação do dinheiro angariado no decorrer de tanto tempo “são obviedades que acontecem debaixo do nariz dos tomadores de decisão na política brasileira.” “Vans, igrejas falsas, postos de gasolina etc. porque atuam com dinheiro em espécie, e são caminhos de simplificação grosseira, porém há um outro drama, mais grave ainda, que é o esforço das facções criminosas de se infiltrarem na política, no Rio de Janeiro já é absolutamente central no comando do estado, e aqui (Fortaleza) está também acontecendo.”

Ciro Gomes disse na palestra que as facções avançam para introduzir pessoas no Ministério Público e universidades, e que o aparelho de repressão do Estado não reage na mesma proporção porque em primeiro lugar a repressão é constituída de trabalhadores que moram no ambiente territorial das periferias. “A família do policial militar precisa desenvolver, como todas as famílias avizinhadas, um modo de conviver mesmo com o terror.”

Repetindo o trivial: sem chance de funcionar

“Se o terror produzido pelas facções é um flagelo popular, para os políticos é uma questão insolúvel. Eles estão dominados nesta quadra da vida brasileira pelo deixa para lá, deixa por menos, vamos fazer o que é possível. E fazer o que é possível repetindo o trivial, repetindo as instituições, repetindo a orçamentação, repetindo a tecnologia envolvida na estrutura de compreensão e enfrentamento do crime não tem a menor chance de funcionar.”

Ciro Gomes: Aparato, caveirão, bala perdida e zoada: espetáculo para não resolver nada. Foto: Divulgação/OAB-CE

Espetáculo e faz de conta

“Aparato, bala perdida, caveirão subindo o morro, polícia fazendo zoada. Acreditem: tudo isso é espetáculo para fazer de conta para a opinião pública que o governo e os políticos estão preocupados com o assunto. Por quê? Porque isso não resolve nada. Se resolvesse alguma coisa o lugar mais seguro do Brasil seria o Rio de Janeiro. E todo mundo sabe que rivaliza com Fortaleza e Salvador como um dos lugares mais violentos e dominados por esta realidade.”

Orçamento da segurança

“O orçamento em vigor este ano na pátria brasileira, somados todos os estados e todos os municípios que se aventuraram em criar aparelho de segurança, soma 1,38% do PIB. Quando avançamos para a União, vamos encontrar uma fração orçamentária absolutamente denunciadora da irresponsabilidade, e do pouco caso, flagrante, dos governos de esquerda e direita. A orçamentação brasileira até hoje ainda está em vigor, determina que o país só pode gastar nesta ou naquela rubrica o que gastou o ano passado mais a inflação, ou seja, 1,38 por cento do PIB mais 5% de 1%, ou seja, estamos condenados para o ano que vem à mesma coisa.”

Omissão das cortes superiores

“Isso ocorre porque se inventou na Constituição Federal um status de norma constitucional ante a absoluta e incompreensível omissão das cortes superiores do país, uma emenda à Constituição que revogou a Constituição. Porque a Constituição brasileira é fundamentalmente principiológica, e anuncia o welfare state, o estado de bem-estar social, afirma a necessidade de um salário mínimo, o direto à saúde em qualquer nível de complexidade, dever do estado com a educação do povo, segurança pública. Ora, se anuncio essas franquias todas e determino que o que aconteceu no ano passado tem de ser replicado mais 5%, eu revoguei na prática a Constituição Federal.”

Revogar a lei 11.343

“Temos de revogar pura e simplesmente a 11.343. E falar claro sobre a descriminalização da droga, e se não quisermos enfrentar as interdições morais e religiosas há países que nos dão exemplos práticos. Estou muito interessado em replicar no Brasil a experiencia de Portugal, tão cristão quanto o nosso país, e que resolveu tangenciando o debate moral e religioso sobre este assunto. Não é debate moral e religioso como não é estrito senso um debate sobre franquias e direitos individuais como um certo grupo identitário completamente equivocado quer empurrar goela abaixo da nossa sociedade.”

Segundo Ciro Gomes, Portugal assessorou-se de médicos e especialistas “absolutamente profundos no assunto e determinou por portaria ciclicamente renovada,” qual é quantidade desta e outra droga que um cidadão adicto dependente precisa usar para si por uma semana.

“Se for esta quantidade, seja de qual droga for, se for apanhado com ela, é problema de contenção de dano, é problema de saúde pública, não tem a ver com repressão. Passou disso, aí sim permanece a repressão,” explicou.

Para Ciro Gomes, é um caminho que merece reflexão. “Poderá eliminar essa grande estrutura de produção de mão de obra para a facão criminosa, eliminar uma injustiça que na prática concretamente é a burguesia usando a legislação e o aparelho de Estado para o processo de contenção das contradições da miséria e da pobreza que certamente vão se desdobrar na violência e cada vez mais na violência organizada.”