O evento de agora é uma tragédia anunciada, e furar a fila revela ilegítimo privilégio e apadrinhamento.
Depois da entrega das vacinas para atender grupos restritíssimos, assistimos a desorganização no plano de imunizar profissionais da saúde que estão na linha de frente do enfrentamento à Covid-19, o que colocou em marcha a pior face do jeitinho brasileiro, que não respeita leis nem formalidades.
Vamos à formalidade: diante da minguada oferta de vacina, por obra e graça do (des) governo que inacreditavelmente não ruiu ainda, há de se obedecer a regra da prioridade das prioridades. Mas no Brasil de tanta malandragem, essa regra que garante salvo-conduto a quem está salvando vidas com suor e sangue desde março de 2020 é letra morta, nada vale.
Em pelo menos 11 estados e no Distrito Federal, a imprensa, durante o dia de ontem (21), noticiou casos inaceitáveis de agentes públicos, seus parentes e estudantes da área médica que jamais entraram numa UTI furar a fila da vacina contra a Covid-19, trazendo a lume o odioso jeitinho brasileiro que se funda no apadrinhamento, na cordialidade excessiva, no ilegítimo privilégio e na conspurcada relação com o Estado, decorrente do fato de que as instituições no Brasil foram esculpidas para coagir e desarticular indivíduos.
Essa desonestidade e malandragem não é decorrente apenas da falta de educação, como se vê, e não está restrita a uma classe social. Ela é modo de vida no Brasil, uma tábua de salvação para grande parte da população que ao invés de cultuar o pode e o não pode, valoriza o sempre possível “pode-e-não-pode.”
Esse jeitinho brasileiro tanto analisado por estudiosos como o antropólogo Roberto DaMatta evidencia-se nessa quadra de disfunção dos poderes públicos, em especial do executivo federal, porque não há, evidentemente que tem inúmeras exceções, preparo e controle adequado nos municípios para a tarefa da imunização contra a Covid-19.
Contudo, mesmo que tudo fosse cem por cento perfeito e organizado, a pior parte do jeitinho brasileiro ocorreria, ela sempre esteve presente em situações de apuro no Brasil.
A diferença é que o evento de agora é uma tragédia de capítulos dantescos, que passa pelo negacionismo da pandemia do coronavírus, saúde pilotada por um cabo submisso, recordando ser ele o terceiro ministro da Saúde, falta de planejamento para a compra de insumos e vacinas e inação criminosa do Estado.
A exibição de fotos em redes sociais de amorais personagens que se prevaleceram de sua posição social e amizade para usurpar a vacina de quem rala para manter um brasileiro vivo, é só mais um ingrediente da tragédia anunciada, e que acaba, por representar perversidade com o sofrimento de milhões, contribuindo para arrastar para o descrédito um plano de imunização em que não há garantia sequer de oferta para uma segunda dose. Imagina a vacinação em massa da população.
Assistimos a um salve-se quem puder.
Pobre Brasil.