Luís Roberto Barroso, o presidente do STF, anda com o hábito de se lamuriar. Sente-se injustiçado com as constantes investidas de parte da mídia que não pinta de rosa nem o Judiciário e muito menos a Corte por ele presidida há pouco mais de um ano.
Acha que os supersalários de juízes que põem no bolso por mês em muitos casos mais de 100 mil reais, até 200 mil reais ou mais por graça de penduricalhos, faz parte da oficiosa e dolorosa profissão e, se não é ilegal extrapolar o teto fincado na Constituição, está tudo bem.
Em outras palavras foi o que disse na abertura do Ano Judiciário do Tribunal de Justiça de São Paulo, no dia 6. Lá, para uma plateia de privilegiados brasileiros da toga, queixou-se: “O que fazemos de bom recai em um silêncio indiferente. Quando acontece algum acidente, somos tratados com furiosa obsessão negativa.”
Barroso, até parece político, gosta de elogio. Não foi por outra razão que, em artigo publicado no Estadão em 13 de janeiro, “O STF que o Estadão não mostra,” teceu autoelogios à Corte, sem por um instante qualquer rebater algumas das críticas feitas pelo centenário jornal, como o excesso de decisões monocráticas e a interferência cada vez maior no legislativo.
A “furiosa obsessão negativa” de Barroso em relação ao que a mídia vem produzindo acerca dos “acidentes” causados pelas 11 ilhas de semideuses – que vão muito além dos supersalários – só confirma que a maior instancia do Judiciário não está nada bem. Não fosse, ele não se incomodaria com o que jornalistas dizem.
Acidentes
É tanto “acidente,” que a população não aprova o trabalho dos ministros, a julgar pela pesquisa PoderData, de dezembro de 2024. Apenas 12% dos entrevistados aprovam a atuação da Corte, achando bom ou ótimo o trabalho dos ministros. 43% o avaliam como ruim ou péssimo.
Acredito que o ministro, diante desses números, precisa calçar a sandália da humildade, rever a rota.
Uma rota que produz “acidentes” como promover o julgamento de milhares de pessoas – que não podem ser anistiadas -, não sendo a instancia jurídica competente para isso. Que está cometendo injustiças nos inquéritos dos “golpistas,” como não promover o acesso devido dos autos à defesa, não ter observado os prazos de denúncia mantendo presas ilegalmente as pessoas antes disso etc.
Será também apenas “acidente” o presidente da mais alta Corte, em tom de gracejo, quando o debate do custo dos alimentos está posto, dizer pela TV que instalou um “departamento fashion” para produzir gravatas a quase 400 reais e lenços a fim de presentear visitantes?
Perdeu, mané
Não há uma carrada de motivos para se ter uma “obsessão negativa” pelo STF? Elevado à Corte por indicação de Dilma Rousseff, Barroso depois assumiu a presidência prometendo conciliação nacional, mas o que fez na campanha de 2022, antes de assumir?
Saiu do tom obsequioso que parecia adotar, respondendo a um educado bolsonarista – “por favor, ministro” – nas ruas de Nova Iorque: “Perdeu, mané. Não amola.” Era o dia da Proclamação da República, 15 de novembro, e os senhores togados, todos bem agasalhados e elegantes, naturalmente uma comitiva fausta e sempre viajante, se irritaram com perguntas sobre o código-fonte das urnas, relatório das Forças Armadas etc.
A expressão recebeu críticas, e entrou para a história. Entrou por força do batom de Debora dos Santos, uma cabeleireira mãe de dois filhos pequenos que está presa por ter usado o batom como arma naquele infeliz 8 de janeiro de 2023. Sacou o perigoso instrumento e retocou na Estátua da Liberdade: “Perdeu, mané.”
Não há evidência de violência praticada, mas foi denunciada por associação criminosa, golpe de estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça. E isso meses depois de presa (março de 2023), em julho de 2024, extrapolando em muito o prazo legal para denúncia. Que “acidente”!
Alexandre de Moraes negou em setembro mais um pedido da defesa de Debora para colocá-la em prisão domiciliar por causa das crianças, o que não foi o caso de Adriana Ancelmo, ex-mulher do inocente Sergio Cabral, que de Gilmar Mendes obteve em 2017 habeas corpus para cumprir pena em casa por causa de um filho de 11 anos. Dois pesos, duas medidas. Outro “acidente?”
Poder inédito
A disposição para interferir nos demais poderes, especialmente no Legislativo, tem sido “acidente” tão grave que a tensão entre os poderes permanece. Evidente que cabe ao STF vigiar e agir em casos de omissão inconstitucional, mas o excesso não é prudente e correto.

Há levantamentos que mostram o excesso de intervenção, um deles feito pelo jornal O Estadão. A lacuna de providência do legislativo levou o Supremo a se auto atribuir legislador, produzindo leis sobre tudo. Quantidade de maconha que o cidadão deve portar, criminalização da homofobia, marco temporal etc. e agora pretende regular as redes sociais.
O poder inédito alcançado individualmente pelos ministros preocupa. Eles sozinhos decidem se ministro é nomeado ou não; suspendem privatizações, cancelam editais, suspendem projetos de desenvolvimento e anulam leis aprovadas no parlamento, caso de lei do pacote das 10 medidas de combate à corrupção, invalidada por Luiz Fux.
São as decisões monocráticas, que o Senado tentou limitar ao aprovar uma PEC, ainda pendente de votação na Cãmara dos Deputados, onde o cabo de tensão entre os poderes tem contornos distintos.
O mais político dos políticos ministros da Corte, Gilmar Mendes, chamou de “pigmeus morais” os senadores que ousaram aprovar o projeto.
Gilmar é da mesma linha de Barroso. Em palestras, gosta de lembrar, em tom de conciliação nacional (contém ironia), que graças ao STF o petista Luiz Inácio foi reabilitado para a política e eleito.
“Nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia,” é uma pretensiosa e política invocação de um Barroso em mangas de camisa em congresso da UNE, onde levou vaias. Parecia político falando.
Para eleitores de Bolsonaro, claro está que aliado ao TSE a Corte atuou para agir contra o candidato do PL em 2022, e assiste razão em parte a reclamação. Exemplo: vídeos às pencas contra Lula foram retirados do ar, vídeos contra Bolsonaro raramente. Alexandre de Moraes presidia o TSE.
Moraes, aliás, é outro que se manifesta politicamente, dentro e fora dos autos. Nas eleições de 2024,o comandante do inquérito de fim de mundo produziu a manchete da Folha: “Moraes diz que eleição de SP tem piores candidatos desde à redemocratização.”
O semipresidencialismo virou o burburinho legislativo da vez, e quem mesmo dá pitaco sobre o assunto? Ele mesmo, Gilmar Mendes. Diz ele que é uma pauta “sobre o qual nós teremos que nos debruçar.” Ele preside o Senado ou a Câmara?
A Corte também gosta de fazer giro pelo mundo, para eventos regados a patrocínio de empresas que tem litígios na Corte, como um fórum jurídico em Londres em abril do ano passado, mas se recusa a esclarecer republicanamente sobre quem paga as contas.
Outro momento “acidental” foi em Roma, Itália, onde estiveram o próprio Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli. Os dois relatores de várias ações de interesse de um dos patrocinadores da conferência, que também estava lá, o empresário Wesley Batista.
Toffoli, aliás, é o amigo do amigo do meu pai (Lula e Emilio), mensagem de Marcelo Odebrecht em um e-mail, revelada pela Crusoé que por isso foi censurada. Pelo ministro Alexandre de Moraes. Pelo STF. Daí para frente tudo piorou, com uma Corte que promove censura prévia.
O indicado de Lula foi também quem anulou multas das empreiteiras, uma delas da Odebrecht, de R$ 8,5 bi, definidas nos acordos de leniência da Lava Jato. Uma só caneta arrasa com o trabalho de procuradores e agentes da lei dedicados a combater a corrupção. Que “acidente!”
Todas as empresas tiveram bancas milionárias de advogados para instruí-las na época. Não foram enganadas, ludibriadas, nada. A Odebrecht, aliás, até publicou carta pública admitindo seus crimes.
Os “acidentes” produzidos pela alta instancia da Justiça não são poucos. Levam o país à insegurança jurídica, à descrença nas instituições. A crise de confiança não é apenas no âmbito do Executivo. É também no Judiciário. Acordem.