O ministro Luís Roberto Barroso, agora presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) por dois anos, assume a incumbência num momento tenso da justiça máxima com o Poder Legislativo, que parece sair da letargia e dar um basta à interferência da Corte nas atribuições parlamentares.
Logo ele. Afinal, ao longo da jornada no STF, aonde chegou via caneta de Dilma Rousseff, relatou casos polêmicos, conservadores, da agenda de costumes a que o Congresso responde no compasso das aspirações do eleitorado e de seus próprios interesses.
Barroso, em um caso de 2016, no qual médicos seriam levados à prisão preventiva por prática voluntária de um aborto no Rio de Janeiro, entendeu que não havia motivos para isso, e foi além: gerou a tese de proibir a criminalização do aborto antes do primeiro trimestre de gestação.
Criminalizar seria violar diversos direitos fundamentais da mulher, como a autonomia, o direito à integridade física e psíquica, direitos sexuais e reprodutivos etc. Rosa Weber e Edson Fachin hipotecaram apoio. É apenas um dentre tantos exemplos de sua atuação.
O livro Os Onze, do jornalista Felipe Rocundo, que por longos anos cobriu o STF, e Luiz Weber, conta que a escolha de Barroso pelo governo de Dilma Rousseff (PT) se deu entre outras coisas para fazer um contraponto a Gilmar Mendes, uma personalidade ativa invejada pelo partido por sua capacidade interna e externa de articulação.
Não há outro ministro com amplo acesso a políticos e partidos de A a Z. E o mais odiado pela opinião publica até aparecer Alexandre de Moraes, indicado por Michel Temer, que aos poucos ganhou esse status com a condução do inquérito de fim de mundo. O xerife da nação está em primeiro lugar no número de pedidos de impeachment e Barroso em segundo, ficando Mendes em terceiro.
Barroso segundo o livro teria recusado a missão de ser o Gilmar Mendes do PT, e antes de ir para o STF até admirava o ministro. Lá dentro, ficou cada vez mais claro que no modo de agir e no campo político a diferença se tornou gigante. Mas eles são, no fim, “peças de um mesmo STF incontido e ativista,” anota Os Onze, integrantes de onze ilhas na expressão cunhada pelo ex-ministro Sepúlveda Pertence, com muitos poderes.
Cheio de saídas criativas nos processos e votos que relata, Barroso na presidência, a depender de decisões que venha adotar, pode elevar a temperatura com o Congressso e com Mendes, a quem chamou de “pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia.”
“A vida para V. Exa. é ofender as pessoas. Não tem nenhuma ideia. Nenhuma. Só ofende as pessoas. Qual é sua ideia? Qual é sua proposta? Nenhuma! É bílis, ódio, mau sentimento, mal secreto, uma coisa horrível. V. Exa. nos envergonha, V. Exa. é uma desonra para o tribunal. Uma desonra para todos nós. Um temperamento agressivo, grosseiro, rude,” continuou ele em março de 2018 quando tratavam de uma discussão sobre doação oculta para campanhas eleitorais.
Luís Barroso também sucumbiu ao ativismo que se desdobra para além do agir de um juiz, mantendo rede social ativa, canal no Youtube – está lá o memorável voto contra a suspeição do juiz Sérgio Moro – e palpitando sobre política e acontecimentos por ela produzidos, em eventos públicos.
Fez em julho um discurso inflamado em congresso da União Nacional de Estudantes, Une, sobre “derrota ao bolsonarismo, “e em novembro de 2022 a um brasileiro que o seguia pelas ruas de Nova Iorque e educadamente perguntou se abriria o código-fonte da votação eletrônica Barroso respondeu “perdeu, mané, não amola.” De um ministro da Suprema Corte se espera manifestação apenas nos autos.
No julgamento de agravos regimentais apresentados pela Procuradoria Geral da República no HC 193726 (suspeição de Sergio Moro), em 22 de abril de 2021, Luís Roberto Barroso apresentou melhor performance, não apenas de juiz mas indicou a de um brasileiro indignado com a corrupção. Logo no início, destacou a superlativa proeza da Lava Jato, enumerando todos os resultados da operação.
Deixou consignado que a operação revelou um “quadro de corrupção estrutural, sistêmica e institucionalizada. Estrutural porque passou a compor a lógica do exercício do poder. Compravam se maiorias políticas com a corrupção. Almejam-se cargos públicos para desvio de dinheiro e financiava-se a política e o próprio bolso com o dinheiro público desviado.”
Continuou: “Além de estrutural, era sistêmica porque uma engrenagem alimentava a outra. Não foram falhas individuais ou fraquezas humanas, foram esquemas profissionais de arrecadação e de distribuição de dinheiro desviados. A obra superfaturada irrigava o pagamento do marqueteiro, a propina na obtenção do financiamento público irrigava o caixa 2 da campanha, tudo lavado em offshores, não declarado, em sucessivas camadas de empresas de fachada para disfarça a corrupção.”
Barroso arremata o tripé: “Em terceiro lugar uma corrupção institucionalizada, porque vinha de dentro das instituições; a corrução entre nós, já disse aqui, foi um pacto oligárquico, celebrado entre parte da classe política, parte da classe empresarial e parte da burocracia estatal para saque do país por vezes em benefício do partido e por vezes em benefício próprio mesmo. Saque do estado brasileiro e em última análise saque do povo brasileiro”.
Ficou ao lado do relator, Edson Fachin, votando pela nulidade da votação da Segunda Turma que, por iniciativa de Gilmar Mendes, se reuniu para julgar o HC da suspeição de Sérgio Moro um dia após Fachin ter decidido ser a Vara de Curitiba incompetente para seguir adiante com a Lava Jato, estando prejudicados os atos, reclamações e HCs pendentes de apreciação. Inclusive o da suspeição.
Notem: Gilmar Mendes segurava há dois anos e três meses o HC da suspeição após pedir vista no final de 2018. “Ignorar, atropelar e desrespeitar o relator não tem precedente na história deste tribunal. E isso sim é que está errado. Porque a reforma de uma decisão é no órgão competente (Pleno) e não no grito,” disse Barroso.
Seu voto magistral foi pelo entendimento de que a competência precede a suspeição. E ao fazer um paralelo com a operação Mãos Limpas na Itália, disse que lá “a corrupção conquistou a impunidade, mas aqui entre nós ela quer mais, ela quer vingança.”
“No avanço do enfrentamento da corrupção, verificou-se uma imensa reação da corrupção. Reagiu com vigor e ousadia. O meio que escolheu foi o hackeamento criminoso dos celulares de todos que ousaram enfrentá-la. Um dia se saberá quem bancou essa empreitada criminosa. Porque nada há encoberto que não se haja de se revelar, nem oculto que não se haja de saber. Mateus 10, 26,” disse.
“Quer ir atras dos juízes e procuradores que ousaram enfrentá-la para que ninguém nunca mais tenha a coragem de fazê-lo. No Brasil hoje temos os que não querem ser punidos, o que é um sentimento humano e compreensível, mas temos um lote muito pior. Que é dos que não querem ficar honestos nem daqui pra frente e gostariam que tudo continuasse como sempre foi,” continuou o ministro no julgamento dos agravos regimentais.
Arrematou com um apelo para que o Brasil faça um pacto de integridade. “Que ninguém se iluda. Não há como o Brasil se tornar verdadeiramente desenvolvido com os padrões de ética pública e de ética privada q/ praticamos aqui. Nós continuamos precisando de um pacto de integridade para mudar o Brasil.”
Um pacto com apenas duas regras lançou o ministro na ocasião: “A primeira, no espaço público não desviar dinheiro; e a segunda, no espaço privado não passar os outros para trás.”
Eram dias conturbados aqueles de abril de 2021. Há indicativos de que outros dias assim virão. É preciso mudança no caráter insular do STF, que avançou no protagonismo politico diante do desprestigio do parlamento, havendo pouco apego à jurisprudência, da vaidade de cada ministro que, isoladamente, depreciou o colegiado e tomou cada um por si decisões de controle da constitucionalidade, e mesmo o Congresso decidindo legislar não freou o ímpeto legislador.
Voto de Barroso abaixo:
Atualização 29/9 10h15