Entrevistado por duas horas no Roda Viva, da TV Cultura, algumas faíscas com jornalistas surgiram com Ciro Gomes (PDT), o segundo presidenciável a ser sabatinado pela bancada do programa, muito mais decorrente da sua capacidade de fluir o raciocínio do que diz e de seu conhecimento do que do preparo da tropa que estava na roda sob o comando de Vera Magalhaes, que a certo momento, aqui com razão, disse a Ciro que precisava interrompê-lo porque não se tratava de um debate o programa mas de um espaço de entrevistas.
Ciro, é sabido, tem o hábito por sua eloquência e rapidez de incluir adendos de fala ao que deve objetivamente responder.
Essa característica, entretanto, e as faíscas iniciais devidas por deboche explicito por parte de jornalistas – um deles, Flávio Costa, não deveria jamais pisar de novo no Roda, um programa tradicional e praticamente único de entrevista na televisão brasileira – , não prejudicaram o candidato, que desde a pré-campanha faz um trabalho de começo, meio e fim todo planejado e coerente.
Ciro Gomes conseguiu dizer o que pretende fazer para governar com um Congresso que sabemos como se comporta, repetiu que o Brasil não aguenta mais seguir com a política econômica centrada nos pilares de cambio flutuante, meta de inflação e superavit primário, um modelo que tem os juros mais altos do planeta e desconsidera a força do trabalho e produção no Brasil e não se furtou a falar de nada, como de costume.
Dois momentos para mim foram marcantes porque os temas são atuais, e um deles aflige especialmente por causa da presença de Jair Bolsonaro no poder, sempre disposto a engendrar tensão entre poderes e causar fricção nas instituições, levando parte da sociedade brasileira a acreditar que ele dará um golpe semelhante a 1964.
Veio de Beatriz Bulla a pergunta sobre democracia. Citou que mais de 1 milhão de pessoas assinaram a carta pela democracia, inclusive o entrevistado, questionando em seguida se Ciro Gomes via a democracia brasileira em risco sob a gestão Bolsonaro. Eis a resposta:
“Eu vejo muito menos por Bolsonaro, que tem um delírio golpista na cabeça, a gente tem de vigiar , mas o risco é mais pelo fracasso da democracia na vida do povo. Isso que quero ponderar às pessoas. A democracia brasileira é uma abstração absolutamente marciana para a esmagadora maioria do povo brasileiro, que está vivendo o pão que o diabo amassou.”
Perfeito e certeiro para mim, por isso não abro mão do direito de votar em quem me identifico – a beleza da legislação do voto em dois turnos reside nisso. Ciro tem razão porque a democracia não é tão somente representatividade: votou e ponto final. Ela é um sistema de governo que exige dar oportunidade aos eleitores de participarem de decisões, e não oferecer tudo de cima para baixo como vem acontecendo.
O Congresso representa lobbies poderosos, o Executivo está refém dele, com o orçamento absolutamente entregue ao centrão e o STF vê a banda tocar sem de fato colocar seu instrumento a favor da sociedade, enganando a patuleia com decisões progressistas na pauta de costumes e se omitindo nas pautas econômicas e de legislação arbitraria e casuística que prejudica a produção e o trabalhador. É o poder que mais tem faltado à República.
Beatriz engatou uma segunda pergunta na orbita do tema: “O Senhor ver risco à democracia do mesmo jeito num eventual governo Lula e de novo um governo Bolsonaro?”
“Tenha paciência, não. O Lula é um corrupto, um demagogo e um populista, mas é do campo da democracia,” disse Ciro.
Corrupção veio à tona em uma boa pergunta do jornalista André Guilherme, do Valor Econômico, que deu a oportunidade de Ciro Gomes se manifestar sobre algo que me incomoda muito, e imagino que a milhões de eleitores decentes, indignados com o roubo incessante de dinheiro público. Este é o outro momento marcante mencionado no início deste texto.
André iniciou citando que as pesquisas indicavam um certo cansaço das pessoas com a questão da corrupção, talvez a sociedade estivesse “esgarçada” com anos da Lava Jato? Isso realmente não está pautando a decisão do eleitor, na sua opinião? Resposta de Ciro:
“Sem dúvida nenhuma que a centralidade do tema corrupção cedeu lugar ao drama social e econômico do povo. Mais o mais grave aqui, e esta é a tarefa que eu quero sustentar, e eu não sou candidato porque é fácil, sou candidato porque é necessário, se você tem uma elite, intelectuais, cientistas, juventude, artistas, relativizando valores, esta sociedade está doente. Se a gente pode falar em doença social e acho que o Brasil é um corpo socialmente muito doente, você tem hoje todo mundo relativizando. Você tem uma deserção das vanguardas intelectuais do país, porque cá em baixo o que está acontecendo? Se relativizando de uma forma absolutamente chocante que a corrupção é uma inerência da política. Isso destrói uma nação.
Se você pedagogicamente ensina para o jovem na adolescência que corrupção em política é uma coisa normal, que é o que está acontecendo, Bolsonaro e Lula são dois corruptos, dois corruptores, e estamos fazendo de conta que não estamos vendo isso. Por quê? Porque no meio do povo há o drama do desemprego, do desalento, da carestia dos alimentos cuja inflação chega a 15%! O desespero do povo é tão grande, e a elite passa a sensação cínica de que a corrupção é isso mesmo, que todo mundo é corrupto; eu não aceito isso porque eu não sou corrupto.”
De novo, me identifico com esse raciocínio. É o que está acontecendo. Um teatro de horrores. Com 10 opções além das duas polarizadas, a elite e a intelectualidade brasileira seguem em direção a mais do mesmo, apostando naqueles que se alinham às práticas antirrepublicanas, inadequadas a quem se senta na cadeira da Presidência da República. Seguem em direção ao abismo da falta de criatividade e originalidade que deveriam estar espelhadas nos programas de governo, atos e comportamentos dos “hábeis” da política polarizada, termo usado por um jornalista debochado.
Pobre Brasil.