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CPI das ONGs: a chance de derrotar um tabu e separar o joio do trigo

Dona do pedaço há mais de 20 anos na saúde indígena, a Missão Evangélica Caiuá é uma das mais de 800 mil ONGs no Brasil.
Ganham mais terras e as crianças indígenas Yanomami estão assim, desnutridas. Foto: Associação Yanomami Urihi.

Há algum tempo revirar a atuação das Organizações Não Governamentais (ONGs) no Brasil é tabu. Elas apareceram como entidades autônomas e independentes, com a porta aberta para desempenhar atividades auxiliares da administração pública em especial a partir da lei 9.790, de 1999. Se candidatam a prestar serviços que o poder público não tem condições ou interesse de executar.

Com o passar do tempo, ganharam espaço, confiança na sociedade e ampliaram recursos públicos mediante convênios para atuar em diversas áreas, atingindo, na longa gestão petista iniciada em 2003, protagonismo inesperado na atividade ambiental por relacionamento muito estreito e, porque não dizer, inapropriado, com o Ministério do Meio Ambiente.

Em 2008, surge o decreto (nº 6527), por meio do qual o governo Lula “dispõe sobre o estabelecimento do Fundo Amazonia pelo BNDES.” É mantido com doação estrangeira. Mais adiante, parlamentares que pediram auditoria no Fundo junto ao Tribunal de Contas da União questionaram o fato do governo cria-lo sem autorização legislativa. O artigo 167, inciso IX da Constituição, de fato diz ser vedada a instituição de fundos de qualquer natureza sem essa autorização.

A questão, até onde sei, não está adequadamente resolvida, mesmo o BNDES tendo apresentado uma Resolução que trata da autorização para criação do Fundo Amazonia, paralisado no governo de Jair Bolsonaro, revigorado agora pelo governo Lula3, com o anúncio de recebimento de doações estrangeiras de novos países. Até o fim de 2018, o Fundo tinha recebido R$ 3,4 bilhões do governo da Noruega, 5,7% do governo da Alemanha, por meio do KfW Entwicklungsbank, e 0,5% da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras).

Cresceram, na medida do protagonismo de ONGs ligadas a atividades religiosas, como a Missão Evangélica Caiuá, que tem convênio com o Ministério da Saúde e sobre a qual pesam denúncias graves na tarefa de assistência a saúde indígena; a atividades esportivas como a de jogadores próximos ao ex-presidente Jair Bolsonaro e às que proliferam desde muito na Amazonia Legal sem que saibamos ao certo o que fazem, as denúncias de desvio de finalidade com o dinheiro canalizado para atividade-meio, enriquecimento pessoal e falta de prestação de contas.

Cresceu de maneira exponencial, segundo o senador Plínio Valério (PSDB-AM), autor do requerimento de criação da CPI das ONGs em 2019, o uso das denominadas ONGs de Prateleira, para escapar da exigência legal de que o recurso público só pode ser acessado se a entidade tiver ao menos três anos de existência.

Quando o então ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) paralisou o Fundo Amazonia e disse que dos 103 contratos um quarto foram examinados constatando-se inconsistências em 18, todos firmados com organizações não-governamentais, o mundo caiu. Havia sim problemas, e quem quiser saber quais são é só acessar o Acordão 71/2020 do TCU, no qual foi acolhido o relatório de fiscalização do MMA, mediante ofício de julho de 2019.

O Fundo Amazônia precisa de transparência – tem site completamente desatualizado, e nada há no portal do BNDES, operador do Fundo – , e as ações das boas ONGs que atuam na Amazônia Legal são certamente enaltecidas. Separar o joio do trigo, por isso mesmo é indispensável, e isso envolve qualquer área de atuação dessas entidades.

O tabu da investigação, portanto, precisa ser derrubado. Na justificativa do pedido do senador Plínio Valério, renovado nesta legislatura, na análise de execução do conjunto dos projetos do Fundo Amazônia, um a um, “percebe-se que quase 80% dos atribuídos ao governo federal, aos governos estaduais e municipais são conduzidos inteiramente por organizações não-governamentais. Isso corresponderia a 48% do custeio de projetos.”

Continua o documento: “Somados aos assumidos diretamente por elas, chega-se à conclusão de que 86% dos projetos custeados pelos fundos estão sob controle de ONGs. Isso explica o interesse dos europeus por esse tipo de falsa doação, que na verdade constitui um investimento, assim como pela insistência em manter o modelo atual.” Assino embaixo.

“Recentemente,” conta o senador, “o ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo narrou fatos chocantes a respeito de uma visita feita por ele e por dois generais a uma área de preservação. A entrada dos militares foi sumariamente barrada por representante de uma ONG.” Onde se viu isso? O que fazem, a quem servem?

Há a expectativa esperançosa de que na semana que se inicia o presidente do Senado Rodrigo Pacheco dê publicidade aos nomes indicados pelos líderes que irão compor a CPI. Será formada por 11 titulares e sete suplentes, com intenção de investigar, no prazo de 130 dias:

a)A liberação, pelo governo federal, de recursos públicos para organizações não governamentais – ONGs – e para organizações da sociedade civil de interesse público – OSCIPs, bem como a utilização, por essas entidades, desses recursos e de outros por elas recebidos do exterior, a partir do ano de 2002 até a data de 1º de janeiro de 2023;

b) Investigar a concentração desses recursos em atividades-meio, de forma a descumprir os objetivos para os quais esses recursos foram destinados originalmente;

c) investigar o desvirtuamento dos objetivos da ação dessas entidades, operando inclusive contra interesses nacionais;

d) investigar casos de abuso de poder, com intromissão dessas entidades em funções institucionais do poder público; e e) investigar a aquisição, a qualquer título, de terras por essas entidades.

Para os 37 senadores que subscrevem a CPI, a simples proliferação de ONGs no Brasil é motivo suficiente para investigação. O então ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Santos Cruz, na defesa de maior transparência no uso de recursos públicos disse que operam na Amazônia ao menos 100 mil ONGs. O Ipea calcula que havia 820 mil ONGs no Brasil em 2016, das quais 7 mil receberam recursos do governo federal.

Caiuá: a dona do pedaço índigena

Em 2017, o site Intercept Brasil publicou que a Missão Evangélica Caiuá, sediada na zona rural de Dourados (MS), tornou-se dona da saúde indígena no Brasil, recebendo mais de R$ 2 bilhões do governo federal entre 2012 e 2017. Sua atuação era restrita, mas em 2001 a Funasa a convidou para atuar no combate à desnutrição de crianças indígenas de todo o Brasil. Quando ela se instalou por aqui? Em 1928, por obra e graça de um missionário americano. Ele veio ao país com intuito de “evangelizar” os indígenas, e com apoio de igrejas presbiterianas iniciou trabalho religioso.

Ganhou robustez quando foi criada a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), em 2010, no Lula2. Os convênios e valores explodem. Há muitas denúncias do povo Yanomami contra sua atuação displicente, conduta desviada e corrupção com funcionários do Distrito Sanitário Indígena da região de Roraima.

Ela comanda um batalhão de profissionais da saúde estimados em 10 mil pessoas, mas deixou morrer mais de 80 crianças indígenas, segundo CPI de Desnutrição Indigena concluída em 2008. Notem que ficou bilionária desde então. O Intercept diz que a entidade monopoliza os convênios de terceirização da saúde indígena graças ao relacionamento que mantem com políticos influentes.

Consultei o Portal Transparência do governo federal e há um convênio em vigor (nº 882484) de 2019 com a Missão Evangélica Caiuá, no valor de R$ 80 milhões e 869 mil, datado para terminar em 31 de dezembro deste ano. Três parcelas foram liberadas pelo governo Lula3 – em janeiro, março e maio -, totalizando R$ 14 milhões e 482 mil reais.

Representante da Caiuá disse ao Intercept, na matéria de 2017, que a entidade, alvo do TCU, do MP e MPT, diante dos riscos e das críticas ao modelo de saúde indígena que recairiam sempre sobre ela, teria decidido não participar mais dos chamamentos dos editais da Sesai. Conversa furada como se nota pelo convênio supracitado.

Por isso, a CPI, cujo pedido menciona denúncias de Henrique Mandetta feitas a essa ONG, tem mesmo de focar na dona do maior pedaço da divisão da saúde indígena.

Com a volta ao poder daqueles que generosamente ampliaram seu faturamento, é bom que tudo seja passado a limpo para possibilitar que a transparencia e o controle sobre o repasse de recursos descentralizados sejam efetivamente fortalecidos. Que venha a CPI das ONGs.