É preciso investigar a audácia dos maus

Não podemos esquecer: estamos no quarto ministro da Saúde, enfrentando uma pandemia nunca antes enfrentada,
Senador Randolphe Rodrigues é autor do pedido de CPI. Foto: Agência Senado.

É preciso confrontar a atitude delitiva de Jair Messias Bolsonaro em se desviar de suas responsabilidades, a maior delas a de defender a saúde do povo brasileiro.

O Supremo Tribunal Federal (STF) foi provocado pelos senadores Alessandro Vieira (SE) e Jorge Kajuru (GO), ambos do Cidadania, para que seja instalada a CPI da Covid, e coube ao ministro Luis Roberto Barroso autorizar a abertura das investigações dos atos e omissões do governo federal no enfrentamento da crise sanitária do novo coronavírus.

Barroso nada mais fez do que seu trabalho. Viu que os preceitos constitucionais e regimento interno do Senado foram rigorosamente observados no pedido de CPI, protocolado em 4 de fevereiro, com 31 assinaturas, fazendo então o que precisava fazer – justiça àqueles que têm direito de escrutinar mediante CPI os atos de governo.

Nunca é demais repetir o que já foi dito durante a semana. A CPI é um instrumento de vontade de uma minoria parlamentar, e não cabe ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, fazer qualquer julgamento sobre seu mérito e conveniência, deixando eternamente em compasso de espera a instalação. A ele cabe, tão somente, o exame formal do requerimento, no caso o que foi apresentado pelo senador Randolphe Rodrigues (Rede-AP).

Cabe registrar que dos três senadores de Rondônia apenas o senador Acir Gurgacz (PDT) hipotecou apoio às investigações.

Jair Bolsonaro, como era de se esperar, reagiu mal. Acusou Barroso de ativismo político, que a ele falta coragem moral e reclamou que a CPI não irá investigar governadores e prefeitos que por ventura tenham desviado dinheiro do combate à pandemia.

Espernear é do jogo, mas atirar a população contra os entes federativos como tem feito o presidente sistematicamente é algo ignóbil, valendo lembrar e trazer outra informação: já existem diversas investigações em curso da Polícia Federal sobre esquemas que já vieram a público por exemplo no Rio de Janeiro, Pará e Amazonas (antes mesmo da falta de oxigênio).

A verdade é que nenhum governante admite CPI, havendo quem jogue pesado para impedir que o primeiro palito de fosforo seja aceso, especulando-se ser o caso agora, mas o governo estaria encontrando dificuldades para retirar assinaturas do quórum obtido pelo senador Randolphe. Em véspera de ano eleitoral, existe menos gente disposta a ouvir o canto da sereia, ainda mais se o canto entona notas reprováveis na opinião pública.

O procurador-geral Augusto Aras, pressionado, acabou por pedir ao STF em janeiro abertura de inquérito contra a atuação de Pazuello no episódio de Manaus, e nada mais foi adiante e não há notícia do andamento desse inquérito.

É preciso rememorar que de meados do ano passado para cá foram pujantes os indícios de omissão e negligência no âmbito do Ministério da Saúde e Presidência da República acerca de providências para o combate à pandemia do novo coronavírus.

Algo foi feito quando o governo federal se recusou por três vezes, de julho a início de outubro, a responder positivamente ofícios do Butantan sobre compras de vacinas do laboratório Sinovac em parceria com nosso centenário instituto, provedor de todas as vacinas do SUS? Nada.

Já em 8 de dezembro, em reunião virtual com governadores, o ministro ventríloquo de Bolsonaro disse que se houvesse demanda compraria a vacina batizada pelos negacionistas de vachina do Dória. Se houvesse demandas!

Àquela altura, o governo argumentava, para inglês ver, que a vacina do Butantan ainda não tinha registro da Anvisa, o que era verdade, mas as duas outras com enormes entraves na conclusão de seus procedimentos burocráticos, uma delas a da Fiocruz, sem instalação adequada para processar a vacina, também não. E, no entanto, tinham vultosos recursos liberados, comprometendo-se o governo com a compra de vacinas cuja produção é risível.

Passados os meses de agonia e de morte crescentes desde então, vai aqui outra lembrança para os que insistem viver em outro mundo, fechar os olhos para a realidade: de cada dez vacinas que imunizam a conta-gotas o povo brasileiro, nove são do Butantan.

Decerto que a imunização poderia ter começado antes, e a CPI será capaz de esclarecer a desqualificação pela presidência da República a respeito da vacina feita em São Paulo, um voluntarismo político reprovável, como também e potencialmente a inoperância dos Ministérios das Relações Exteriores e da Saúde.

De novo, não podemos nos esquecer: estamos no quarto ministro da Saúde em dois anos de governo, enfrentando uma pandemia nunca antes enfrentada, algo inadmissível portanto esse troca-troca, tratado com uma normalidade obscena pelas instituições e pela sociedade. Há de ser também desnudado.

A inoperância passou pela absurda falta de planejamento, não só para garantia de contratos variados com farmacêuticas para compra de vacinas, como também para a compra de seringas, medicamentos e insumos diversos e tudo mais que veio à tona na surreal condução da crise sanitária no Brasil, uma das economias mais fortes do planeta, com pesquisadores e cientistas respeitados, criativos e produtivos.

É preciso sim investigar a audácia dos maus, puni-los pela negação de grave crise sanitária, por todos os desacertos e conflitos causados com entes federativos, pela incapacidade de dialogar, de conter o autoritarismo e a mórbida condução de áreas essenciais neste momento como a Saúde e Relações Exteriores, e especialmente confrontar a atitude delitiva de Jair Messias Bolsonaro em se desviar de suas responsabilidades, a maior delas a de defender a saúde do povo brasileiro.

Os bons não podem se omitir.