Mercantilização da saúde e educação a caminho: acabar com o piso é só o primeiro passo

Nada democrático, o governo e equipe da Fazenda hostilizaram parlamentares que manifestaram preocupação com o piso, e agora partem para uma cruzada inconstitucional.
Ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Foto: Rovena Rosa.

A mercantilização da educação e saúde públicas está a caminho. Acabar com o piso constitucional que determina 15% da Receita Corrente Liquida (RCL) para gastos com saúde e 18% para educação é o primeiro passo, e não há nenhuma surpresa nisso.

Em 30 de março, na Folha de São Paulo, o Ministério da Fazenda já anunciava estudos na alteração dos pisos e que iria apresentar uma proposta de emenda à Constituição para reverter essa regra. Vai acontecer. É questão de tempo.

Se qualquer um de nós pesquisar bem verá que a intenção do lobo vestido em pelo de cordeiro, no caso o PT em seu quinto mandato presidencial, já segue nessa direção tem tempo. Que ironia! A destruição do que foi bandeira histórica do partido, uma das mais importantes, é obra de um militante, Fernando Haddad, com aval de Luiz Inácio Lula da Silva.

Na Folha, o secretário de Tesouro Rogério Ceron disse que se os gastos – que Luiz Inácio chama de investimentos no oportunismo da sua esperteza – continuarem vinculados à receita, “que é uma escolha da sociedade e política,” outras áreas que não são saúde e educação precisam crescer menos. Ciência e Tecnologia e Industria e Comercio precisam crescer menos secretario? O rentismo não encontra limites, segue sugando o orçamento.

Por mim, outras áreas nem precisavam existir. O Brasil não sente falta. De 38 ministérios, a inutilidade de pelos menos uma dezena é patente. Há retrabalho, e claro que essas pastas não somam orçamento de R$ 18 bilhões que é o plus a mais necessário neste ano de 2023 para corresponder ao cumprimento do piso de acordo com a Constituição, uma vez que a entrada em vigor do marco fiscal revogou o teto de gastos, que previa correção apenas pela inflação anual.

É certo também que o governo, se não fosse dado a esbanjamentos para acomodar todos, a gastos perdulários, à rendição nunca antes vista no país de num só mês liberar R$ 11 bilhões em emendas para o centrão de Lira, e não fosse ventríloquo de retóricas da educação ser tudo para o Brasil, iria recorrer a expediente que não o aviltamento da Constituição, contribuindo para o desmonte de dois setores financiados com atrelamento à receita corrente líquida, algo assimilado pela sociedade, aplaudido por ela. Assim como no marco fiscal, não fazem uma discussão sequer!

O apagão de ministérios a que a ministra Simone Tebet (Planejamento) se referiu em uma coletiva de imprensa ao dizer que não há como honrar o cumprimento do piso este ano é o apagão (político) dela própria e do governo. Com o marco fiscal no jogo da votação, sabiam que no ano de 2023 tudo voltaria a ser como antes da lei do teto. Faltou dinheiro, agora atropelam a Constituição. É um método de governar, e nele não há espaço para informar e muito menos consultar a população.

E, por princípio, estou certa de nada ser imutável. O financiamento pode vir a ser feito de outra maneira que não por um percentual de RCL, quem sabe, precisa discussão, mas agir sempre de cima para baixo numa República é um tortuoso exercício de arrogância e, mais do que isso, de desconsideração a regras democráticas que vão além da democracia eleitoral.

Fizeram a opção, autoritária, de privilegiar uma lei complementar draconiana, que limita o crescimento de despesas primárias em apenas 2,5%, ao invés de dialogar com transparência e verdade sobre o impasse que seria gerado no confronto com a Constituição.

Nada democrático, insisto, o governo e equipe da Fazenda hostilizaram parlamentares que manifestaram preocupação com o piso, e agora partem para uma cruzada inconstitucional.

Encarregaram o Tribunal de Contas da União (TCU) de dar uma saída jurídica para não aplicação do piso da saúde e educação, e o subprocurador Lucas Furtado, que atua junto ao TCU, já enviou um pedido à Corte para liberar o governo de não pagar os pisos salariais da saúde e educação até o final do ano.

Deputado Zeca Dirceu incluiu um jabuti em um projeto para atender Fazenda. Foto: Cleia Viana.

Para atender os interesses da equipe econômica, o deputado Zeca Dirceu (PT-PR) incluiu um jabuti (inserção de artigo que nada tem a ver com o texto da lei em debate) na lei complementar aprovada no dia 14 de setembro que compensa Estados e municípios por cortes no ICMS havidos no governo Bolsonaro.

O artigo permite ao governo Luiz Inácio pagar um piso menor da saúde em 2023. Outra aberração inconstitucional.

O Planejamento diz que o processo de consulta ao TCU está em estado avançado, e a Fazenda, por seu turno, não quis comentar o assunto porque o pedido para o governo não aplicar o piso de gasto constitucional, aqueles 15% para a saúde e 18% para a educação sobre a RCL não teria sido formalizado. Que entendimento! O TCU, anotem, irá acatar, e o desgaste político para Luiz Inácio já começou.

Ao jornal Valor, a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora da FGV Elida Graziane Pinto disse que o gesto do governo “abre um precedente perigoso.” “Pode provocar um efeito manada em tribunais de contas de Estados e municípios,” disse.

Há método na Fazenda, com o propósito único de avançar no desmonte do financiamento público da educação e saúde para dar espaço à mercantilização. O formato foi identificado lá atras, porém os incautos e devotos de São Luiz Inácio ainda acham que o país está entres os três piores num ranking de mais de 40 no valor destinado à educação básica por ano por causa de Bolsonaro ou de Michel Temer.

La atrás, nos dois governos de Luiz Inácio, foi quando a educação e a saúde se consolidaram como business, aponta o estudo “A Nova Classe Média no Brasil como Conceito e Projeto Político,” de 2013, dissertado por diversos pesquisadores e professores.

“Isso pode ser constatado de vários ângulos – seja pela enorme expansão das atividades privadas tanto em saúde como em educação, seja pela abertura de capital em bolsa de empresas desses setores que a partir de 2004 tornam-se grandes empreendimentos. Foi nesse período que se estabeleceu uma forte associação entre a emergência da chamada “nova classe média“ e uma suposta preferência pelas soluções de mercado na prestação de serviços de saúde e de educação,” registraram os professores Claúdio Salm, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Ligia Bahia, da Faculdade de Medicina e do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ.

Vale dizer que os autores do estudo supracitado identificaram uma sociologia de araque empregado pelo governo marqueteiro para fazer a sociedade acreditar no surgimento de uma emergente classe média. Mas isso é outra história. Recomendo a leitura do estudo. Fiquemos de olho no lobo Camilo Santana, o reservado ministro da Educação. Por que ele não se manifesta contra o ataque ao piso constitucional da educação?

Atualização em 17/9/2023, 10h23