O 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta que entre as mortes violentas intencionais 78% foram de negros.
Ana Luiza Albuquerque, Folha de São Paulo
RIO DE JANEIRO
A violência racial continua sendo um grave problema no país, indica o recém-divulgado 16° Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Os dados mostram que pessoas negras ainda são a maioria das vítimas de uma série de crimes violentos.
Entre as mortes violentas intencionais —categoria que reúne homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes por intervenção policial—, 78% foram de negros e 21,7% de brancos. No Brasil, 56% da população é negra, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
No caso das mortes pela polícia, a diferença é ainda maior: 84% dos alvos são negros. Em 2021, este índice apresentou queda de 31% entre a população branca, mas cresceu 5,8% entre os negros, em comparação ao ano anterior.
Entre os próprios policiais civis e militares que são alvo de mortes violentas, a maioria, 67,7%, também é negra. Já entre as vítimas de feminicídio, 62% são negras e 37,5% são brancas.
Outro dado alarmante é o da evolução da população carcerária. Em 2005, 58% dos presos eram negros e 40%, brancos. Em 2021, a porcentagem de negros saltou para 67,5% e a de brancos caiu para 29%.
Defensora pública no Rio de Janeiro, Lívia Casseres afirma que a violência racial é um problema histórico que não foi efetivamente enfrentado pelo Estado. “Os dados do último anuário dão a dimensão da estruturalidade da coisa e da insuficiência de transformações meramente culturais, no campo do discurso”, diz.
“Vemos nos dados da violência o quão enraizado é o racismo e o quanto é necessário fazer reformas profundas. Se o Brasil quer chegar a algum lugar em termos de bem-estar da sua população, esse é um tema central.”
Para produzir políticas públicas que alterem este cenário é preciso fazer um diagnóstico baseado em dados —tarefa muitas vezes difícil no país. No ano passado, por exemplo, seis estados (Bahia, Espírito Santo, Pernambuco, Rondônia, Roraima e São Paulo) não disponibilizaram os registros de injúria racial ou de racismo.
A classificação étnico-racial das vítimas usa como base exatamente os dados fornecidos pelos estados e pelo governo federal, diz o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Pesquisador da instituição, Dennis Pacheco diz que a partir de 2017 mais estados passaram a informar estes dados, mas que nos últimos dois anos a melhora estagnou.
“Ainda é um dado de baixa qualidade, tem mudanças muito significativas nos percentuais e nos números absolutos de ano a ano”, afirma.
Pacheco defende políticas públicas voltadas para pessoas negras e diz que no Brasil há uma tradição histórica de entender a pobreza de forma unidimensional, sem observar as vulnerabilidades ligadas à cor.
“Isso acaba fechando as portas para um debate em torno de raça (…) Se não se faz políticas públicas focais, focadas em grupos específicos e em suas vulnerabilidades, não se combate as desigualdades”, afirma.
Uma das famílias afetadas por essa violência é a de Durval Teófilo, 38, assassinado em fevereiro por um vizinho ao chegar em casa, em São Gonçalo (RJ).
Na noite de uma quarta-feira, ao voltar do supermercado onde trabalhava, ele caminhava em direção ao portão do condomínio onde morava, quando foi atingido por disparos do militar da Marinha Aurélio Alves Bezerra, que estava dentro de um veículo.
Imagens de câmeras de segurança mostraram que a vítima gesticulou para tentar se proteger, mas ainda assim recebeu novos disparos. O vizinho alegou que atirou porque viu Durval mexendo em uma mochila e pensou que seria assaltado.
Bezerra é réu por homicídio qualificado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Seus advogados afirmam que ele agiu em legítima defesa.
Durval deixou sua mulher, a atendente Luziane Teófilo, 35, e uma filha de seis anos, que viu o crime da janela de casa.
A viúva conta que a menina ficou traumatizada após a morte do pai, chorando muito e se negando a comer. “Ela falou várias vezes ao psicólogo que viu o momento que o pai caiu no chão. Ela era muito apegada ao Durval”, diz Luziane.
Para a atendente, o assassinato foi um caso de racismo. “Ele [o autor dos tiros] poderia muito bem ter disparado para assustar. Se fosse eu, branca, ele jamais atiraria. (…) Ele não deu chance para o Durval se defender. Ele escutou o Durval falando que era vizinho, ele sabia quem era.”
Irmã da vítima, Fabiana Teófilo, 36, diz que se pergunta a mesma coisa todos os dias: “Será que se fosse um branco passando ele teria atirado?”.
“Minha mãe criou três filhos sozinha, nenhum nunca se envolveu com nada errado. Você perder a vida porque a sua pele é diferente da pele do outro… Além de uma covardia é uma ignorância muito grande”, afirma.
Fabiana diz que sofre com o racismo todos os dias e que sente medo que algo aconteça com seus filhos, um menino de 14 anos e uma menina de 4, também negros. Ela já orienta o adolescente, por exemplo, a sempre andar com sua identidade.
“Você tem que ensinar a aceitar certas coisas que, se tivesse outro tom de pele, não precisaria aceitar. Ao mesmo tempo, tem que ensinar a não abaixar a cabeça. Tem que ensinar à criança que ela tem os mesmos direitos de um branco na teoria, mas que isso não acontece na prática.”