Impulsionada por ódio, desespero e muita desinformação, a turba de manifestantes do dia 8 de janeiro de 2023 certamente não fazia ideia de que os atos de vandalismo praticados contra a sede dos Poderes em Brasília acabariam por encrencá-los em pesadas penas, julgados na Corte máxima, com supressão de instância, sem ter a quem recorrer.
São centenas de pessoas sem foro privilegiado, julgadas no lugar errado para dar o exemplo em nome de uma democracia de faz de contas. Para fazer política. Não se faz justiça. É que a individualização da conduta foi suprimida em sessão virtual realizada em agosto de 2024.
Com isso, a tese de crime multitudinário, isto é, crime de multidão, que vinha sendo aplicada para esses casos em várias relatorias de Moraes, virou dogma para punir os que clamavam por intervenção e contra as urnas eletrônicas, mas não usaram de violência no golpe tabajara a que seus líderes da direita raivosa comandada por Bolsonaro articularam sem sucesso, desde sempre dizia eu, aliás.
A cabeleireira Debora dos Santos Rodrigues, 30 anos, é uma dessas pessoas que conscientemente e de forma voluntária aderiu à Festa da Selma, amplamente divulgada nas redes sociais e que todas as autoridades de Brasília resolveram ignorar. Não quiseram impedir o pior. De novo, para fazer política.
A denúncia na Ação Penal (AP 2508) a que Debora responde e está em julgamento virtual iniciado na sexta-feira, 21, não traz sua conduta detalhada pelo Ministério Público Federal, MPF.
O seu único ato de “violência” registrado no longo voto de Alexandre de Moraes é o batom sacado da bolsa para pichar uma estátua avaliada em pouco mais de R$ 2 milhões segundo o ministro com o qual escreveu a famosa “Perdeu, mané,” de autoria de Luís Roberto Barroso, proferida durante incomodo itinerário que fazia pelas ruas de Nova Iorque cercado por eleitores bolsonaristas que o admoestavam com perguntas desagradáveis.
Moraes, contudo, diz que a “adesão subjetiva” e “associação para a pratica de crimes” por parte de Débora se deu antes do dia 8 de janeiro, “embora não seja possível precisar o momento exato em que houve essa adesão,” fazendo um relato minucioso da sua participação em todas as etapas da chegada à capital federal, presente em acampamento com “algumas pessoas armadas, e, por isso, está praticando o crime de associação criminosa armada.”
Inacreditável!
“Razão assiste ao Ministério Público, pois em crimes dessa natureza, a individualização detalhada das condutas encontra barreiras intransponíveis pela própria característica coletiva da conduta, não restando dúvidas, contudo, de que TODOS contribuem para o resultado,” sublinha o ministro no voto que não considerou sequer a absorção de penas para crimes semelhantes, cravando 14 anos de prisão em regime fechado para Débora Rodrigues.
Impressionante. O ministro diz que não dá para individualizar a conduta, mas o voto revela perversidade jurídica desconcertante pois diz que Débora “quebrou vidros, cadeiras, painéis, mesas, móveis históricos e outros bens que ali estavam, causando a totalidade dos danos descritos pelo relatório preliminar do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).”
Para em seguida com todas as letras falar da única obra que ele considera vandalizada pela eleitora bolsonarista: a estátua do escultor mineiro Alfredo Ceschiatti. A perversidade do voto atribui também à Débora o emprego de “grave ameaça à pessoa e emprego de substância inflamável,” e assim vai, algo desnecessário para contextualizar os crimes coletivos atribuindo-os à ré, pois detalhes e provas dos atos a ela colecionados não há.
O que Moraes apresenta de prova em seu voto é a Informação de Polícia Judiciária n. 69/2023, que identifica Débora como a pichadora da estátua; Laudo de Correspondência Morfológica Facial nº 79/20236, que confirma serem imagens de Débora as fotos do jornal Folha de São Paulo feitas no flagrante da estátua da Justiça; o Termo de Declaração nº 1075191/20237 e o interrogatório da ré colhido em audiência de instrução.
Não aceita a denúncia como inepta, Débora está condenada também a pagar R$ 30 milhões por danos morais coletivos além de responder por quatro crimes do Código Penal e artigo da lei que trata de crimes contra o ordenamento urbano e patrimônio cultural.
Evidente que se ao roteiro do “golpe” do dia 8 – colocado entre aspas porque para mim não está bem configurada essa condição – Débora dele fez parte associando-se a uma multidão em estado de tumulto instigada a agir em desfavor do Estado Democrático de Direito, deve ser punida por isso.
Porém, sem individualizar sua conduta, prevalecente no Direito Penal brasileiro, há de se considerar a dosimetria da pena, a absorção de tipificações, a política criminal como lembrou o jurista Walter Maiorevitch e o tempo em que está na cadeia, mantida presa sem que a denúncia fosse apresentada no prazo legal, outra perversidade jurídica desse processo.
Moraes, inclusive, cita Júlio Fabbrini Mirabete, falecido professor e jurista, que em doutrina ensinou terem penas atenuadas aqueles que cometerem crimes sob influência de multidão, influência do coletivo, mas não os provocaram, “agravada a pena para os líderes, para os que promoveram ou organizaram a cooperação” dos acontecimentos.
Estou com o advogado criminalista Guilherme Carnelós, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD): os réus do 8 de janeiro deveriam estar sendo julgados pela justiça comum e individualmente.
Não é certamente fácil nos crimes multitudinários individualizar a conduta, mas o cenário de Brasília, aquela região onde tudo ocorreu, permite localizar envolvidos, como aconteceu em dezenas de casos, lembrou ele.
Toda a ação daquele dia foi gravada por câmeras de segurança existentes no perímetro da Praça dos Três Poderes e dentro dos próprios prédios depredados, à farta demonstraram as emissoras de televisão, com exceção, uma estranheza enigmática, das imagens que o então ministro da Justiça Flávio Dino sonegou.
Curiosamente, há de se rememorar, somam a elas a existência de transparência inacreditável de filmagens via celular das imagens diversas feitas pela turba que clamava pela deposição do eleito e derrubada do sistema.
A tese do crime coletivo no caso me parece indevida para aplicação generalizada, desconsiderando a subjetividade e propósito no agir de cada um, a menos que todos estivessem surtados caminhando com armas na mão para depor a República unidos pela violência e ameaça à vida com deposição e instalação de nova ordem.
Instalada a política no STF, a Justiça saiu pela janela. É essa a percepção do povo brasileiro.