Desde que protocolada pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), em novembro do ano passado, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 35/2022) foi embalada pela imprensa simpática ao atual governo, juntamente com outros cinco projetos de lei por ele apresentados, como o “pacote da democracia.”
Ele conseguiu para a PEC as assinaturas necessárias para deixar exclusivamente sob competência do Supremo Tribunal Federal (STF) qualquer julgamento acerca do mínimo ato que seja visto como atentado ao Estado Democrático de Direito porque, segundo Renan, apenas a “Suprema Corte, pela autoridade de suas decisões, teria condições de reagir com rigor necessário” e “no lugar de várias ações penais dispersas pelo país teríamos no Supremo Tribunal Federal o melhor refúgio para a democracia brasileira.”
A PEC não deu ibope.No site do Senado, apenas 20 pessoas aprovam a proposta, 175 não (até 20/7).
Sobrevivente da política, sempre no topo do poder desde Collor de Melo, do qual foi líder do Governo no Congresso Nacional e ministro da Justiça de FHC, o senador anuncia que pretende acelerar a tramitação para agradar a Corte graúda e o ministro Alexandre de Moraes, após o entrevero desrespeitoso e agressivo supostamente protagonizado pela família Mantovani. Renan sobreviveu também ao menos a uma dezena de denúncias no STF.
Ele disse em seu Twitter: “A agressão de ogros ao ministro Alexandre de Moraes mostra que é hora de punir os crimes de ódio, alguns já tipificados. Vamos enquadrar a intolerância política, como propus no pacote democracia. Vou procurar o relator Veneziano do Rego e o presidente para votarmos em agosto.” O monstrengo está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), ainda sem parecer.
Muito bem. Só pela leitura de parte da justificativa ao projeto, aspeada acima, parece obvio que a PEC não assegura mais democracia. Pelo contrário. Ela inibe e tolhe a democracia, ao depositar no STF o único “refúgio” de eventuais agressões e crimes que ocorrerem contra o Estado Democrático de Direito, de norte a sul do país, concentrando todas as ações penais, mesmo que envolvam pessoas sem foro privilegiado. Num país desigual, a começar pela justiça.
Antes de entrar na seara jurídica com a qual, obviamente, não tenho familiaridade, mas o mínimo é possível explicitar, avalio que o valor da democracia, ainda que imperfeita, precisa da defesa de todos. E reside na consciência e no estímulo de cada membro da sociedade, cada juiz, seja de que instancia for, ações em sua defesa, considerando os preceitos que alicerçam esse regime político, respeitando e aplicando as normas legais já existentes.
Isso é mais democracia, plural, assentada no julgamento de cada caso particular de desvio das condutas democráticas, num país heterogêneo e continental. O que a PEC de Renan propõe é estimular o estado de coisas que impregna o Supremo, notadamente as decisões de Alexandre de Moraes, que se em um primeiro momento mereceu aplausos de parte expressiva da sociedade hoje ganha cada vez mais repúdio de parte maior ainda.
Moraes tem extrapolado poder, age como denunciante, investigador, inquisidor e juiz. Dirige um inquérito de fim de mundo que nele tudo cabe. O encastelamento de decisões de punição às altercações antidemocráticas no órgão Supremo porque ele é o guardião da Constituição, conforme argumenta Renan Calheiros, é descabido. Vemos no STF 11 ilhas com exibição de força em suas decisões monocráticas e muitas vezes autoritárias.
Até as capivaras do Lago Paranoá sabem que na capital federal o STF está contaminado pela política e pela relação no mínimo indevida com advogados milionários, os que dão as cartas em casos de repercussão nacional. De seus 11 ministros são poucos, talvez cinco, que falam apenas nos autos, negam a tentação da celebridade, a vaidade e participação em barganhas políticas cada vez mais evidentes para a sociedade brasileira, em encontros e banquetes antirrepublicanos, em conchavos cristalinos.
A cena de Ricardo Lewandowski tirando foto e dando declarações ao lado do relator do projeto de resolução que reinstituiu o orçamento secreto 2.0 antes mesmo do STF julgar a ação que questionava a existência do modelo surgido no governo de Bolsonaro é emblemática do quanto os ministros sucumbiram à política e mantem jogo de interesses com o legislativo nacional. Mais recentemente, Roberto Barroso, em mangas de camisa, igual um político, suado e inflamado, discursou em evento da UNE. O STF e ele próprio distribuíram nota acerca da distorção do tom da fala. Não, senhores ministros! O equívoco é a presença e o discurso, seja qual tom for.
Nada disso pode, como é inadmissível um ministro que manuseia ad eternum um inquérito negar acesso a partes conforme conveniências, censurar emissora de TV ou impedir qualquer crítica, mínima que seja, mas redes sociais, a um político, ao sistema eletronico de eleição ou colocar em xeque a democracia, o que é legítimo.
Quem não lembra do ex-secretário da Receita Federal Marcos Cintra, após ter endossado de forma democrática as criticas de Bolsonaro sobre o resultado da votação ter tido o constrangimento de ir depor na PF por ordem do Sr. Moraes? Ter tido sua conta do Twitter suspensa? A que ponto chegamos!
A PEC de Renan não amplia a democracia, pelo contrário. Dará ao STF um poder ainda maior do que já tem, e a formação da Corte, majoritariamente identitária, militante (praticamente todos tem rede social), escolhida pelo lulopetismo, indiscreta, condescendente com os crimes de colarinho branco e por vezes obsequiosa em prestar favores aos demais poderes não indica tempos de pluralidade e efervescência das ideias divergentes.
Os crimes de injúria, ameaça, ofensa e discriminação entre outros estão todos no Código Penal mas o impoluto senador Renan Calheiros considera ser necessário criar mais leis para redobrar as penas de crimes como estes no âmbito da política.
O pior é que tanto a PEC quanto o projeto de lei por ele apresentado que trata de intolerância política são faces de uma moeda que não se apresentam sozinhas, e tem o claro objetivo de constitucionalizar a censura prévia, limitar o direito de reunião, o exercício legítimo da liberdade de expressão, esvaziar o contraditório e a ampla defesa e, grave, desqualificar e banalizar a separação de poderes.
Sim, porque existe antes a tal da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD). Ela terá poder, imagine, para dizer o que é ou não é verdade nas críticas que qualquer um de nós fizer às políticas públicas do governo federal. Também foi aprovado, não esqueçamos, projeto que pune quem discriminar político, ainda pendente de votação no Senado. É um cerco, um conjunto de medidas para castrar a liberdade individual e coletiva do brasileiro, medidas que avizinham pesadelo sob pretexto de alegada defesa da democracia.
A instauração das ações penais será, pelo jeito, letra morta considerando a exigência do cumprimento da competência jurisdicional constante no artigo 69 do Código de Processo Penal. O que determina a competência, conforme esse item, são o lugar da infração, o domicílio ou residência do réu, a natureza da infração, a conexão ou continência etc.
Será também letra morta, caso aprovada a PEC e os projetos de lei de Renan Calheiros, o título incluído no Código Penal sobre os Crimes contra o Estado de Democrático de Direito, em 2021, após a Lei de Segurança Nacional ser extinta.
Subirá tudo para o STF, uma Corte que titubeia no zelo à Constituição. Um STF politizado e pronto, não tenho dúvida, a agir contra um político que supostamente comete crime contra a democracia porque sua posição ideológica não se alinha ao comando central de poder, seja para “favorecer” quem sabe um governador ou um certo presidente da República.
Democracia exige mais democracia. Exige mais educação, consciência e exercício da cidadania, não a tutela e as amarras de políticos que no Brasil legislam furiosamente para manter privilégios do Sistema.
Abaixo as propostas do senador: