Eles são 500 mil, mais do que engenheiros civis e do que dentistas no Brasil.
Eles determinam como agem e pensam milhões de pessoas e, diante da indiferença das autoridades, ajudam a espalhar banalidades – apesar das boas exceções.
Por Luiz Felipe Castro – Revissta Veja
Atualizado em 30 jun 2022, 21h24 – Publicado em 1 jul 2022, 06h00
Houve um tempo, nem tão distante assim, em que ideias capazes de iluminar debates e indicar caminhos vinham de grandes personalidades de diversas áreas do conhecimento. Na política, Ulysses Guimarães … guiou gerações com sua aversão à ditadura e amor à democracia. No campo da cultura, nomes como Carlos Drummond de Andrade, Di Cavalcanti e João Gilberto, entre tantos outros, inspiraram não apenas poetas, pintores e músicos, mas certamente milhões de brasileiros que os admiravam. Na ciência, Adolfo Lutz e Vital Brazil assumiram durante décadas o papel de propagadores do saber. Não foram poucas as vozes que, ao longo da história, ensinaram, balizaram e, afinal, influenciaram o modo de agir e raciocinar.
A vida mudou, a a sociedade é outra, e agora as grandes cabeças pensantes foram superadas por uma categoria barulhenta e numerosa, muitas vezes descuidada com a informação que divulga e que pode até assumir determinadas posições em troca de uma quantidade extraordinária de dinheiro. São os chamados influencers digitais, em inglês mesmo, indício de provincianismo para lá de tolo. É denominação afeita a designar indivíduos que seduzem multidões nas redes sociais.
Um estudo recente realizado pela Nielsen traça um quadro perturbador desse universo. A pesquisa revela que o Brasil é o país dos influenciadores. Existem 500 000 deles com ao menos 10 000 seguidores espalhados pelas diversas plataformas. Sob qualquer ângulo que se olhe, é muita gente: o número supera o total de engenheiros civis e iguala-se ao contingente de médicos (leia no quadro). Para além das questões práticas envolvidas — uma nação precisa mais de doutores ou de tagarelas exibidos que têm opinião sobre tudo? —, há outro ponto que merece ser mencionado.
Essa turma destemida e aparentemente irrefreável determina o que milhões de pessoas vão consumir e influencia as suas visões de mundo agora e no futuro. Lembre-se, 2022 é ano eleitoral e os influenciadores estão por aí pontuando sobre o pleito, às vezes disseminando informações falsas e, nos casos mais graves, a soldo de políticos.
Sim, o Brasil é um dos campeões mundiais em tudo o que diz respeito a esse universo. Outro levantamento, das agências Hootsuite e We Are Social, mostrou que somos o segundo país que mais segue influenciadores (44,3% dos usuários da internet), atrás das Filipinas (51,4%), à frente de outras nações emergentes. Não é à toa. Lugares empobrecidos, com baixo nível educacional e poucas opções de lazer, formam o ambiente ideal para a propagação dos influenciadores a um clique. “As pessoas que estão à margem da sociedade enxergam o digital como um meio de ascensão”, diz Bia Granja, cofundadora da consultoria Youpix.
Entre as várias preocupações que rondam o fenômeno, a principal diz respeito à profundidade dos temas debatidos. O escritor italiano Umberto Eco definiu a questão em um comentário célebre. Nunca é demais recorrer a ele: “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade.
Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”. Como influencers, alguns idiotas da aldeia se tornaram vozes ressonantes de alcance monumental e parece não haver mecanismos para detê-los.
Em certos aspectos, as redes sociais se tornaram terra de ninguém. Isso só favorece os influenciadores, que encontram campo livre para fazer o que bem entendem. Na área financeira, não são poucos os influencers que vendem a promessa de riqueza fácil e há até os que negociam pirâmides financeiras, o que é crime. No ramo da saúde, o perigo está à solta com os curandeiros que oferecem curas sem comprovação científica ou que fazem propaganda de remédios, o que também é ilegal. Não existe fiscalização e as autoridades pouco se debruçam sobre o assunto.
Como separar os profissionais sérios dos picaretas? Seguindo exemplos de outros países, o Brasil estuda a criação de leis para regulamentar o trabalho dos influencers, mas os textos estão travados no Congresso. O Código de Defesa do Consumidor e o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) já preveem punições, mas isso não tem sido suficiente.
“As medidas acontecem em ritmo mais lento do que a velocidade das mídias digitais”, diz a influencer de finanças Nathalia Arcuri, do canal Me Poupe!, reconhecida pela seriedade de seu trabalho. “A questão que enxergo como mais relevante é a responsabilização das plataformas pela entrega de conteúdo de desinformação. Não só os usuários precisam responder pelos conte.. conteúdos que publicam, mas também as plataformas.”
Os próprios influencers, especialmente os mais populares, deveriam tomar algumas medidas simples para não difundir bobagens. A primeira delas é não entrar em áreas que não dominam. “Durante horas de transmissão, surgem inevitavelmente assuntos diversos”, diz Alexandre Borba, o Gaules, segundo maior streamer do mundo, com mais de 3 milhões de seguidores. “Meu objetivo é promover entretenimento e diversão, mas, quando o assunto é sério, sempre incentivo a busca por ajuda profissional.” Consultar especialistas — o que o bom jornalismo sempre deve fazer — é algo pouco recorrente nesse universo.
Os primeiros grandes influenciadores surgiram no YouTube, com a explosão de nomes como PC Siqueira, que se envolveu em toda a sorte de polêmicas, o humorista Whindersson Nunes, que anunciou um período sabático para cuidar da saúde mental, e Felipe Neto, o mais ativo no debate público.
Aos 34 anos, doze deles dedicados a seu canal de vídeos, Neto é hoje um dos cinco maiores youtubers do planeta. Sempre em tom cômico, foi moldando o seu perfil e passou a adotar um tom engajado (até demais). O carioca é agora uma espécie de ombudsman da vida nacional, despejando ideias, análises e opiniões sobre tudo, mesmo sem ter o embasamento adequado — de futebol a política, de saúde a economia. Basta acompanhar por alguns minutos o que Neto diz para notar que suas proposições são superficiais e precipitadas, mas isso não impede que angarie multidões de fãs.
Uma pesquisa realizada pela startup Inflr apontou que massacrantes 75% dos jovens brasileiros querem ser influencers e que 64% deles consideram a questão financeira a principal motivação. A promessa de renda garantida, ímã inescapável, contudo, não condiz com a realidade. Outro levantamento, da consultoria Atlântico, apontou que 23% dos influencers brasileiros não ganham 1 centavo sequer pelo trabalho nas redes — no máximo, recebem brindes das marcas. Metade do total fatura menos de 500 reais e apenas 14% embolsam mais de 2 000 reais mensais. “A profissão exige esforço e estrutura”, afirma Peres, professor da ESPM e pesquisador da USP.
A internet, reconheça-se, teve o mérito incontestável de levar informação para bilhões de pessoas. Isso é ótimo e não há volta, felizmente. Mas ela tem seus pecados, como permitir que pessoas superficiais — os tais influenciadores — moldem o pensamento das atuais e futuras gerações. É preciso atenção com os falsos profetas que pululam por aí, e que fecham as portas de quem pretende ser sério.