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Reflexões sobre fanatismo

Os concílios (religiosos) não têm mais poder para devorar homens; mas certos partidos têm, reflete o poeta mineiro.
Escritor Carlos Drummond de Andrade. Foto: Blog DariaUmLivro.

Carlos Drummond de Andrade

Não é fácil decidir se nossa época se caracteriza pelo excesso ou pela míngua de crença. Enquanto o século XVIII ficou marcado pelo racionalismo filosófico e revolucionário, e o século XIX pelo cienticismo e a ideia socialista, o período em que vivemos não logrou ainda definir-se como um tempo ateu, místico, idealista, materialista, hedonista, surrealista, infantil ou bárbaro. Engajado em todos os rumos, nosso tempo não se entregou a nenhum deles, como os amantes se entregam no ato amoroso.

Drummond: certos partidos têm poder para devorar homens.

Contudo, certas formas de encantamento que observamos na vida contemporânea parecem confirmar a cediça verdade de que o homem é um animal religioso, ainda quando não o pareça e precisamente quando se esquiva a parecê-lo. Sendo o sentimento religioso aquele que mais identifica o indivíduo com a comunidade, temporal e intemporalmente, dir-se-ia que ele opera até na base dos movimentos dirigidos contra o próprio sentimento religioso. O que mais caracteriza tais movimentos é, com efeito, a religiosidade profunda. Ritos, processos mentais,invocações, proselitismo, dogmas, crença ilimitada, tudo isso é posto em funcionamento – por baixo da zona de consciência, é claro – em nome de ideias e aspirações precisamente contrárias a qualquer espírito confessional.

Copiando a religião no seu natural fervor e na sua doação total do indivíduo a uma verdade absoluta, o homem de hoje, na espécie a que me refiro, chega a copiá-la nas suas deformações mais evidentes, como sejam a intolerância e o fanatismo. Estas, como se sabe, eram palavras do vocabulário religioso, ou melhor, do vocabulário que exprime a exacerbação do espírito religioso, às turras com os próprios religiosos não-ortodoxos ou com o simples incréu.

Hoje, são termos do vocabulário político, de onde imperceptivelmente escorreram para o da vida literária e até para o do esporte. Ao definir em seu Dicionário Filosófico o conceito de tolerância (“perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices; é a primeira lei da natureza”),Voltaire tinha em mente as guerras de religião, que desde o primeiro concílio de Nicéia vinham ensangüentando o mundo. Hoje em dia os concílios não têm mais poder para devorar homens; mas os partidos, certos partidos, têm.

E como se devora um homem? Já não se usam leões, e as fogueiras de há muito foram proscritas; mas a imaginação do fanático descobrirá sempre um método prestante para dar cabo do não-fanático; ou de outro fanático. Nem importa que essa imaginação seja curta; o fanatismo provê.

As modernas execuções políticas não necessitam sequer ser efetivas. Sem dúvida, seria mais delicioso e reconfortante para o ortodoxo fritar literalmente as vísceras do herege que negou a divindade do líder X ou do tratadista Y. Como, porém, o serviço ainda não está organizado em todas as partes do mundo (não esquecer que muitos são fritados antes de fritar), há que contentar-se a gente com assados espirituais ou em efígie. As palavras são de grande serventia nessa eventualidade, e, aplicadas com perícia, produzem a morte política, a morte moral, a morte literária e outras mortes provisórias. Se o serviço chegar a instalar-se, tais palavras valerão como apontamentos, e então talvez se suprimam os adjetivos.

Em rigor, não há ferocidade na imolação, real ou simbólica, do adversário. Há um sentimento de justiça social, quando não de comiseração humana. Nosso opositor é necessariamente um homem infeliz, desviado do reto caminho. Se ele abanou orelhas diante da primeira advertência da nossa folha oficial, se riu da segunda e não quis comparecer à audiência do nosso chefe imortal e infalível, se se recusa a pintar folhinha ou a fazer discurso rimado, há que lapidá-lo,por bem mesmo de sua alma. Todo o mecanismo psicológico e moral de Inquisição atua nesse raciocínio. Castigo é misericórdia.

Sem duvida, é suave (para quem a pratica) a ortodoxia. Ela nos dispensa de exercícios incômodos, inclusive o de revermos o objeto de nosso culto. Já a heterodoxia e o livre exame importam em riscos intelectuais, que não interessa afrontar. E se apelidarmos de científica a nossa ortodoxia, lastreando-a com algumas ideias gerais imutáveis, embora continuamente as esqueçamos na pratica, teremos estabelecido o fofo travesseiro, não há dúvida, como queria Montaigne, mas da certeza consoladora e apta a conferir-nos a suprema dignidade intelectual.

Eles também se sacrificam, os ortodoxos … É exato. A cada ortodoxia corresponde outra ortodoxia inconciliável. Esta liquida aquela. Os mártires proliferam, no alto dos postes, junto aos muros, nos subterrâneos, e como sempre nos tempos modernos, fora das religiões. Sem falar no sacrifício mental, voluntário, da autoimolação a uma consigne de grupo. Mas será o martírio prova de autenticidade de uma crença qualquer? Não constituirá antes um pseudoargumento, próprio a iludir-nos, tanto quanto ao mártir?Morrer por uma ideia é incontestavelmente sublime, porém na realidade dispensa-nos do trabalho de examiná-la, confrontá-la com outras, julgá-la. Variante útil: matar por uma idéia, que igualmente nos exime desse trabalho maior.

Estranhas perspectivas de um mundo que se deseja banhado de liberdade e funcionando em harmoniosa coexistência de temperamentos e tendências. Aspiramos a uma terra pacífica, através da crescente militarização dos espíritos, para já não falar na preparação bélica. Pretendemos o congraçamento humano, eliminando a divergência política ou estética. E fazemos da injustiça, da incompreensão e do ódio os veículos de uma distante e soturna justiça, a ser desfrutada por alguns eventuais sobreviventes.