Vou contar por aqui uma história de políticos e da política uma vez por semana. Se as circunstâncias da vida permitirem, e minha disciplina – ando em falta ultimamente -, não irei falhar e penso que alguns de vocês vão dar risada, ficar com raiva, saber o que não sabiam, se surpreender etc.
Como lembrei neste 6 de novembro ser o aniversário de um dos poucos políticos que admiro, Ciro Gomes, irei relatar uma historinha que ilustra a coerência de Ciro em sua trajetória política, lastreada pela decência no uso do dinheiro público.
Desde que acompanho sua vida pública, o vejo como uma espécie de Dom Quixote, o herói incompreendido de Miguel de Cervantes. Creio que essa retidão seja responsável, em parte, pelas mudanças várias que Ciro fez de partido, e grande parte do eleitorado não compreende a faceta que indica colocar a decência acima da ideologia.
Em 98, na eleição da reeleição – o maior instrumento de corrupção política desde então – Ciro Gomes saiu candidato a presidente da República após romper com o governo de Fernando Henrique Cardoso, que lhe ofereceu ministério caso ganhasse de novo a eleição – e ganhou – mas Ciro, então no PPS, não aceitou o cargo. Não mudou – disse, após o fim da eleição deste ano, que não deseja ocupar posto algum no governo Lula, ex-aliado.
Um dos motivos para romper com FHC foi a manobra que a equipe econômica fez no câmbio, de um dia para outro, as vésperas do pleito, para o tucano ganhar a eleição. As curvas que o Plano Real pegou, não previstas no seu lançamento, por ele foram consideradas um estelionato. Com toda razão.
Como sempre, Ciro não tinha tempo de TV, mas saía por aí, lança em punho com o escudeiro Roberto Freire, deitando falação no governo FHC. Ficou ruim para ele, o povo desconfia e não vota, porque nos estados se banqueteava com os candidatos tucanos, um deles Tasso Jereissati, um dos políticos que junto com Ciro fizeram a política mudar para melhor no Ceará.
Porém Ciro, sendo Ciro, não ficava calado. Em fins de setembro, numa coletiva de imprensa em Minas Gerais, ele desafiou os jornalistas, do mesmo modo como fez agora, em 2022, a publicar o que passou a contar.
Relatou ele: “Algumas pessoas estão recebendo informações privilegiadas do governo e tirando dinheiro do país. São pessoas que já passaram ou que estão no governo, como Marcilio Marques Moreira, Armínio Fraga, Pérsio Arida, André Lara Rezende e o ministro das Comunicações Mendonça de Barros. Eles fazem parte de um trânsito considerado crime na Europa e nos Estados Unidos. Com base nesse sistema de acesso a informações, os filhos de Mendonça de Barros montaram, em fevereiro, uma corretora que atua na Bolsa de Mercadorias e Futuros e já é a terceira em volume de negócios. Trata-se de um caso de extrema gravidade.”
Pois não é que em novembro as fitas grampeadas do BNDES escancaravam o escândalo da privatização das telecomunicações? Nas duas primeiras fitas estavam lá três dos citados por Ciro: o ministro Mendonça de Barros, o presidente do BNDES, Lara Resende e Persio Arida, um dos pais do Plano Real. Havia ainda dois nomes e 24 fitas.
A denúncia de Ciro não saiu na maioria dos jornais, mas saiu no Estado de São Paulo e na Tribuna da Imprensa.
Hoje, não se enganem, a coisa está bem pior. Ciro denunciou diversas vezes antes e durante a campanha a venda da carteira de crédito do Banco do Brasil a preço de banana pelo governo Jair Bolsonaro e as vozes da imprensa se calaram. Ninguém foi investigar.
O duro de tudo é constatar que a política gira e volta no Brasil surreal e os mesmos personagens continuam dando as cartas, sequer foram punidos. Mendonça de Barros, André Lara Resende e Persio Arida enriqueceram via sistema financeiro, viraram banqueiros, e agora dois deles estão aí, na transição de Lula.
Quatro dos dez mais lucrativos bancos do mundo estão no Brasil, mandam no orçamento – o sistema de juros e amortizações consome mais de 50% do orçamento nacional, perto disso o orçamento secreto é roubo de galinha –, corrompem a política e a imprensa e ninguém quer saber. Só Ciro. Ele é mesmo diferenciado, um Dom Quixote da política. Muita saúde, parabéns!
Essa história é extraída do livro do excelente jornalista Sebastião Nery, a “Eleição da Reeleição.”